Crónica de Alexandre Honrado | Meia dúzia de ideias ou coisa nenhuma

Meia dúzia de ideias ou coisa nenhuma

Quando trabalhamos nesse ingrato equilíbrio que é o de analisar cientificamente a cultura (que é sempre humana, mas nem sempre humanista ou valorizadora do ser humano) nada parece limitar-nos, a menos que os conceitos se ergam diante de nós como muros. É de conceitos que falo agora, escrevendo sobre eles.

O estudo da cultura pode colocar na lamela do nosso microscópio a fatia de pizza, coisa praticamente universal, a tatuagem da pele ou do muro da rua, o piercing, a mesquinhez do comportamento individual, a amedrontada manifestação deste ou daquele comportamento coletivo, a imbecilidade da opinião publicada e dos meios de comunicação que ignoram ortografia e gramáticas à procura de audiências, também os apressados e incompetentes fazedores de opinião que todos queremos ser ou – maldição!!! – todo o relativismo que há em cada coisa, em cada momento, em cada ação e pensamento, capaz de tornar como única equidade a falta de qualidade em que nos aprisionámos.

Uma das categorias de investigação da cultura oferece-nos a abertura de um tejadilho enfeitado com uma janela, a da filosofia do tempo, que lida com a ontologia e a epistemologia disso mesmo, o tempo.

A ontologia trata do ser enquanto ser e a epistemologia é também chamada a teoria do conhecimento. Talvez uma teoria do reconhecimento seja cada vez mais necessária, num tempo de diluições como o nosso – já Bauman falava da modernidade líquida, do tempo que nos leva a ser leve e líquido… Paul Valéry, que devíamos ler e não citar, embora ninguém resista a escolher algumas das suas palavras sempre que necessário, dizia, o que se segue: “Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas tornaram-se mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados … Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?”

Em filosofia do tempo, presentismo é a tese de que nem o futuro nem o passado existem.

Presentismo é o modo essencial em que andamos vivendo: negamos quase até à náusea o conhecimento da História, e da Antropologia, das Ciências Humanas em Geral, únicas  traves-mestras capazes de aguentar o edifício das exigências quotidianas – e por consequência o seu reconhecimento – ou que nos dá uma estrutura vazia para a construção do que somos e do que queremos ser, como se não viéssemos de úteros antigos, como se desprezássemos sémenes iniciais, como se não tivéssemos avós (alguns até egrégios), mas fossemos produtos de uma criação espontânea, sem migalha de energia cósmica e infinitamente medíocre na expressão do que somos e nos motiva.

O futuro, que não faz história, também o negamos, esquecidos que dependemos dele e que há que fazê-lo agora.

Esse triunfo do presentismo – que nega as melhores características do homem pós-moderno, nomeadamente naquilo que o relaciona com a pluralidade (que os novos medos asfixiam), a novidade (da qual se começa a desconfiar, porque é criatividade), a secularização (que mantinha Deus e dispensava as religiões, e que agora começa a recuar no melhor caminho percorrido); a racionalidade (só se exalta a racionalidade quando se põe a razão ao serviço dos interesses humanos, coisa que os populismos detestam e os fundamentalistas esmagam); e a imersão no universo (ao destruir a natureza, e andamos a impedir fazer parte dela).

Era só isto o que não me apetecia escrever hoje, mas já está.

Alexandre Honrado

Historiador

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